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Casos de Vovó Celina

por PROFETA, Celia Filgueiras de Moraes. 2001
São casos que minha avó contava. Portanto são verídicos, ainda que eu mesma não os tenha verificado. Não era o caso. Mesmo porque a Vovó Celina pouco gostava de se reportar ao passado. Razões? Haviam muitas. Assim eu respeitava e pouco perguntava, apesar de mostrar sempre o maior interesse em ouvir. Havia sempre em seu olhar aquela profundeza da recordação, do reviver o passado, do sentir os fatos, afinal essa coisa que damos um belo nome português: SAUDADE.
( ... veja Do irmão que foi para a região de RJ e MG em Origens da Família Filgueiras)
Sei (porque o conheci) que o tio Jacó era irmão do vovô Elias. Uma gracinha de velhinho. A velhinha também era muito bonitinha. A carinha dele era a padrão da família. Era "mignon", de terno de linho azulado, brilhando de bem passado, camisa impecável, e usava bengala de bastão de prata. Um amor de bondade! Desconheço se haviam outros irmãos. Creio que os Smith ou Shimith de Cachoeiro do Itapemirim (veja no mapa) eram da parentela do tio Jacó. Um deles, dos Shimith, que era pouco mais velho do que eu e estudou também no Colégio Estadual Muniz Freire e foi oficial da FAB, deve saber, porque o tio Jacó se hospedava em casa deles e de umas floristas que faziam lindas flores artificiais, lá bem para cima, quase na Ilha de Cachoeiro, na beira do rio, onde tinham uma deliciosa varanda com uma parreira, a cavaleiro do rio Itapemirim. Eram duas irmãs já idosas, muito trabalhadeiras e artistas. Que pena ter me esquecido os nomes delas! (Observação de Marietinha: uma delas se chamava Duquita Pobel). Fui muitas vezes visitá-las com a vovó. Para mim eram velhíssimas. Hoje, pensando, não deviam ser tanto assim, agora que eu me vejo como um broto aos 69 anos! Faziam uns biscoitos, umas bolachas, uns bolinhos, uns docinhos que eu devia ter aprendido a fazer para os meus netos nunca se esquecerem de mim, como o Proust!
Voltando ao vovô Elias: Moraram em Faria Lemos, em Carangola (veja no mapa) (onde ainda havia a casa deles e o Homero fotografou há não muitos anos atrás), e em outros lugares. Por que terminaram a vida em (São José do) Calçado (veja no mapa), no Espírito Santo? Sangue de aventuras. A história é meio trágica. O vovô possuía uma bela fazenda em Santa Rita do Passa Quatro, talvez uma das cidades que fica na estrada de rodagem entre Belo Horizonte e Vitória. A casa era das clássicas da época. Mourões de madeira de lei a sustentavam como hoje os pilotis de cimento armado. O assoalho era bem a cima do chão para dar lugar embaixo para guardar os "trens" da lavoura: enxadas, arreios, carros de boi, sacos, esse mundo de tralha que quase não existe mais hoje. Subia-se a escada para chegar à varanda que na maior parte das vezes levava à sala de visitas, à casa de moradia. Quartos, cozinha, corredor, outra varanda nos fundos, na área de trabalho. Era uma boa e grande casa. O jardim embelezava a frente, cheio de belas flores. Rosa drusque e príncipe negro estavam presentes, também miosótis , malva, e cravos. Quantas vezes, reformando o jardim no fim do verão em Resplendor, a vovó se referia à beleza das flores naquele jardim. Claro que havia outras, muitas, mas essas eram as suas preferidas. E na janela, nos quartos e na varanda, vasos de flor-de-cera e malva, infalivelmente. Na varanda da cozinha o ferro-de-brasa esquentando ou esfriando... Para educar as crianças o vovô Elias levou para lá uma preceptora francesa.
Vovó Teófila se casou muito cedo, pelos 13 anos, para cuidar dos dois sobrinhos que haviam ficado órfãos. Eles eram o tio Elias filho e o tio Olegário. Conheci a ambos quando bem pequena.
Sábio o vovô, em procurar uma pessoa capaz para educar aquele monte de criança! A vovó Teófila não era mais de 20 anos mais velha que a vovó Celina! Ainda bem que tinham muitos escravos, gente boa, que gostava muito da família, tanto que não partiram depois da Libertação.
"Taí" o desastre. Mais uma tempestade daquelas, uma tromba d'água que levou tudo que estava no porão. Animais de sela, de carro, os aparelhamentos de montaria, de tropa, de carro de boi, a colheita guardada, ferramentas, pouca coisa recuperada. Ainda o chiqueiro e o galinheiro, o pomar, as plantações perenes, tudo levado pela água. Desastre completo. O que aconteceu aos escravos, onde moravam, nunca eu havia pensado no assunto antes. Mineiro guarda dinheiro embaixo do travesseiro. Ajuntados os cacos, vendido o que sobrou, com toda a família (imagine quanta gente: família de sangue), lá foi o vovô, com os ex-escravos, a cavar morro, barranco, ilha, costa capixaba a fora atrás dos riquíssimos tesouros... da lenda. Enquanto isso, o tesouro cresceu em casa mesmo. Os filhos se tornaram adultos, tiveram os seus próprios filhos, tornaram-se independentes, profissionais, cuidaram de si mesmos e dos pais.
Conheci em Calçado a casa que foi deles, levada pela Teófila, filha da Biluca. Já sem os filhos, a transformaram em pensão e as salas da frente em escola. Tia Corina e tia Jovita eram as professoras. O vovô curtia uma erisipela que não sarava (ah! Benzetacil!). Foram dos primeiros a se converterem ao Evangelho, logo depois do vovô Romão, marido da vovó Celina.
Nos anais de Calçado há referencias a eles. Tio Cristiano e tio Horácio (Observação da Mariettinha: Tio Cristiano, era muito bom tio, alegre, divertido, nos levava doces e balas que deixava na mala e nós ficávamos rondando e jogando indiretas e ele se divertindo, Dentista, casado com Dorcas e Tio Horácio, coletor estadual, casado com Alzira Alt), irmãos da vovó, foram moços muito ativos na cidade, liderando a construção do hospital onde há retratos deles. Devem ter sido bons maridos porque suas viúvas sempre os recordavam com saudade. Ambas chamavam-se Dorcas, eram bonitas, talentosas, crentes e viveram bastante. Uma delas passou os 100 anos e a outra quase chegou lá.
A preceptora francesa devia ser uma pessoa competente. Vovó sabia falar francês. Eu tive as provas escolares dela. Letra bonita, toda em francês. Linguagem, aritmética e ciências. O papel já estava amarelado, e tinha fitinha azul unindo as páginas de papel almaço. Também sabia crochetar, tricotar, costurar e bordar todos os pontos, até aqueles clássicos que se usa em fardas de gala, com fio de ouro.Você pode imaginar que aventura era mexer nas latas de linhas da vovó? Rolinhos de fio de ouro para bordar, vidrinhos de miçangas, vidrilhos e lantejoulas, fitinhas, sutaches, sinhaninhas, navetas, agulhas as mais diversas de bordar,costurar, de crochê -em todos os números- de metal ou osso ou marfim,como eram também as navetas de fazer filé e frivolité. Que mundo de sonhos e fantasias! E não era só a vovó que conhecia aquelas ciências femininas. Tenho ainda toalhinhas de crochê e filé feitas por tia Corina, já bem velhinha, lá pelos 80 anos, e sabiam cardar e fiar!
Qual o preparo dado aos meninos, não tenho idéia. De cultura, devia ser igual, pelo menos, ao das meninas porque os tios Cristiano e Horácio eram pessoas de cultura na cidade e o tio Alfredo, que andou por Vitória lá pelos anos 30 e 40, terá visto a Escola de Comércio Alfredo Filgueiras. Sobre ela, há muita gente boa que conheceu bem a história e deverá contá-la a nós.
Tia Corina teve escola no norte do Paraná, em Rolândia (veja no mapa). Pelo que me contaram lá, os primeiros alunos eram filhos de imigrantes e ela os ensinava a falar português, e aos pais também. Foram líderes da Igreja Presbiteriana naquela região. A casa que conheci era bem antiga, muito interessante. Depois de uma serquinha clássica e um portão, passava-se por um jardinzinho e chegava-se à varanda, não muito grande. Entrava-se na sala de visitas e dela, na grande sala de jantar, de onde se entrava nos quartos que a cercavam. O quarto da tia Corina era ao lado da sala, com janelas para o jardim da frente. Mas o interessante era a cozinha! Bem grande. Espalhada. Alem do tradicional fogão de lenha, mesas e cadeiras, armários, havia uma cisterna! E o tronco de um enorme pinheiro, velhíssimo; pela grossura do tronco se via. Mais adiante estavam os tanques de lavar roupas, varais. O fantástico era a maneira de puxar água da cisterna! Nunca tinha visto igual: uma corrente de ferro, bem grossa, em movimento continuo, puxava a água clarinha lá do fundo e a levava até a caixa que pousava no alto do telhado! Naquela terra fria, com tanto nevoeiro pela manhã, geadas, vento frio, nada mais prático que aquela imensa "cozinha" que era o centro de trabalho, não sendo necessário sair de casa para os cuidados corriqueiros do dia-a-dia. Imenso o meu deslumbramento por aquele amor à natureza. Uma casa de moradia em volta de um pinheiro original, preservado da mata milenar! Há alguma coisa mais civilizada neste mundo?
Conheci a Geralda, enteada da tia; e os homens - infelizmente não me lembro dos nomes deles. E a neta de uma das ex-escravas que era a filha da tia Corina (?). Como era querida! Um amor de pessoa! E a tia Azenath e a tia Dinorah, como também o meu pai, assim a consideravam: a prima! mas o nome? Quem sabe alguém se lembra. Ela trabalhava na escola pública, encarregada da merenda. Cozinhava maravilhosamente, lembrando a tia Nastácia dos livros do Monteiro Lobato. E tinha a mesma aparência dos desenhos dos livros das edições antigas, bem feitos. Todos eram ativos na igreja que era razoavelmente perto, dispensando muitas vezes a ida de charrete. Mesmo tia Corina, já bem idosa, gostava de ir caminhando. Se houvessem crianças, não a dispensariam, tenho certeza. Tão difícil carregar menino dormindo depois do culto! Considero um grande privilégio ter ido à casa deles, mesmo por tão pouco tempo. Quanta coisa eu saberia para contar a vocês.
Dos outros tios sei menos ainda. Já me referi às duas Dorcas (Observação da Mariettinha: Dorcas e Alzira e moravam em Castelo, ES). Uma bem mais velha que a outra, Moravam em Alegre, Guaçui, Castelo, Celina, era essa a região. Gostaria de poder transpor para aqui o que tenho delas nos meus olhos: a simpatia, a simplicidade cheia de beleza e amor, o porte, a cor dos cabelos, a sinceridade na fé, na amizade, tanta coisa que consistiu em vidas preciosas.
Vovó Celina teve um namorado quando mocinha. Falava no moço: "Guardo um leque, presente dele há tantos anos!". Mas não se casaram. O felizardo foi o vovô Romão Batista de Moraes. Contava que iam a bailes, muitos. Divertiam-se verificando os sapatos das pessoas. Até aquela época todos os sapatos eram tipo mocassim, sem muita diferença entre pé-direito e pé-esquerdo. Agora vinham talhados, bem definidos, mas as pessoas não sabiam calça-los e trocavam os pés. Imagine o rapaz vir "fazer sala", todo "frajola", de pé trocado!... Ou a garota de vestido de seda fina, cheia da babados e rendas, anáguas engomadas, salto alto de pé errado!! Era o melhor da festa aos olhos delas. Como eu gostaria de relembrar as histórias das festas durante a visita do Imperador e família a São João del Rei e outras cidades por lá! São apenas sombra na minha memória.
Em São José do Calçado a venda do vovô Romão ficava na esquina da praça com a rua que sobe como continuação da estrada de Bom Jesus de Itabapuana, onde passava a estrada de ferro. Vendia de tudo, desde sal grosso a luvas de pelica francesas, de móveis austríacos e fazendas inglesas e francesas a arreios,um bem abastecido shopping center de hoje. Conheci o local, levada pela Teófila, que se lembrava de toda a história. A casa onde a vovó morou não existia mais, só o terreno vazio, em 1981. Mas a casa da Teófila ainda era mobiliada com os móveis comprados do vovô. Muito bem cuidados sempre, dava gosto ver. Esses móveis austríacos eram semelhantes a algumas peças que chegaram à nossa casa em Resplendor, camas, espelhos, guarda-roupas e cadeira-de-balanço, sofá e poltronas de palhinha, que abandonamos em Resplendor e não conseguimos mais recuperá-los... Como o vovô Romão fazia parte do grupo que construiu o hospital da cidade, lá está o retrato dele, do médico amigo, e de um dos irmãos da vovó.
Vovó Aninha, mãe do vovô Romão, tinha muitas imagens. Ao se converter, quebrou-as e jogou os cacos no córrego que passa no fundo da casa. Algum tempo depois, foi encontrada lá no fundo do riacho, uma estátua que se tornou a santa padroeira da cidade. Aprendi que pode ser uma delas que não tinha sido bem esmigalhada. O ver. Mário Neves escreveu algumas coisas sobre cada um da família no livro do cinquentenário da igreja em Calçado.
Foi muito difícil para vovó criar os quatro filhinhos sem o vovô. A família cuidou bem deles, dando muito carinho, amor. Papai (Synval Filgueiras de Moraes), o mais velho, estudou com o Reverendo Omegna em Friburgo, morando na casa deles. Conheci a Dona Lili Omegna e as filhas, a Eunice e a Silvia, que se lembravam muito do meu pai e me deram também muito amor. Como o Ateneu do Reverendo Omegna deixou de existir, papai foi estudar em Lavras, no Instituto Gammon. Lá se preparou para o seminário, indo para Campinas. Terminando o curso em 1929, o Presbitério o mandou para Resplendor onde passou o ano de treinamento antes de ser ordenado pastor. Já ordenado e pastoreando as igrejas Presbiterianas desde o vale do Rio Doce até o mar, no Espírito Santo, casou-se em 1930, levando a mamãe para Resplendor, Minas Gerais, onde nascemos e moramos até 1953. Como ambos deixaram memórias, é mais fácil copiá-las.
Vovó Celina e as crianças, tio Ismar, tia Dinorah e tia Azenah, continuaram morando em Calçado até que o tio Alfredo os levou para Vitória. Vovó teria uma pensão na escadaria da Avenida Capixaba, perto do colégio, e "os meninos" estudariam. Quando os quatro filhos eram pequenos, houve um surto de meningite em Calçado e algumas crianças ficaram com sequelas. O Luciano da Biluca, a Diosmenia sobrinha do vovô, e o tio Ismar, foram prejudicados para sempre.
O tio Ismar carregou a vida toda um barulho no ouvido que o enlouquecia. Conseguiu fazer o curso de comércio mas nunca trabalhar continuamente em um mesmo emprego. Durante toda a minha vida vi o sofrimento de todos pela incapacidade dele. Já maduro, entrando na velhice, a medicina bem mais desenvolvida, descobriu-se que uma pequena operação recuperaria a audição e não teria mais as crises difíceis. Mas ele fugiu de Belo Horizonte. Tinha sido operado, doando um pedaço de osso para fazer enxerto na coluna do papai. Não se dispos a se submeter a outra, apesar de ser para o próprio bem.
Tia Dinorah foi uma lutadora. Em Calçado trabalhou em uma farmácia, de algum parente, e gostava de química. Era elegante e jogava tênis muito bem. Em Vitória casou-se com um belo jovem loiro, de olhos azuis, que trabalhava no cais. Era o tio Antônio Peyneau, francesinho simpático e querido. Para ajudar, ela costurava e dava aulas de corte e costura, durante muitos anos. Sempre trabalhou muito na Igreja, tocando armônio, dando aulas na Escola Dominical, liderando o Sociedade Auxiliadora Feminina da igreja.
Tia Azenath foi a caçula. Estudou na Escola Normal do Estado, sempre com boas notas. Logo depois de formada, casou-se com Jader Gomes Coelho, pastor Presbiteriano. Foi verdadeira auxiliadora do tio Jader. Como a mamãe, mais da metade do ministério dele foi feito por ela. Como trabalhava e com que sabedoria! Sempre teve uma escola na igreja. Fiz o quarto ano primário com ela na escola da Igreja de Vitória. O que ensinou, não esqueci. O grande trabalho deles foi em Cachoeiro de Itapemirim, onde criaram o Ateneu Cachoeirense, uma escola que formou muita gente boa e ainda está lá, orientando e formando bons brasileiros. Cursou Pedagogia no Colégio Cristo Rei em Cachoeiro de Itapemirim, tornando-se grande amiga das freiras.



por PROFETA, Celia Filgueiras de Moraes. 2001



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