Casos de Vovó Celina
São casos que minha avó contava. Portanto são verídicos, ainda que eu mesma não
os tenha verificado. Não era o caso. Mesmo porque a Vovó
Celina pouco gostava de se
reportar ao passado. Razões? Haviam muitas. Assim eu respeitava e pouco perguntava,
apesar de mostrar sempre o maior interesse em ouvir. Havia sempre em seu olhar
aquela profundeza da recordação, do reviver o passado, do sentir os fatos, afinal
essa coisa que damos um belo nome português: SAUDADE.
Sei (porque o conheci) que o tio
Jacó era irmão do vovô
Elias. Uma gracinha
de velhinho. A velhinha também era muito bonitinha. A carinha dele era a padrão da
família. Era "mignon", de terno de linho azulado, brilhando de bem passado, camisa
impecável, e usava bengala de bastão de prata. Um amor de bondade! Desconheço se
haviam outros irmãos. Creio que os Smith ou Shimith de Cachoeiro do Itapemirim
(
)
eram da parentela
do tio Jacó. Um deles, dos Shimith, que era pouco mais velho do que eu e estudou
também no Colégio Estadual Muniz Freire e foi oficial da FAB, deve saber, porque
o tio Jacó se hospedava em casa deles e de umas floristas que faziam lindas flores
artificiais, lá bem para cima, quase na Ilha de Cachoeiro, na beira do rio, onde
tinham uma deliciosa varanda com uma parreira, a cavaleiro do rio Itapemirim.
Eram duas irmãs já idosas, muito trabalhadeiras e artistas. Que pena ter me esquecido
os nomes delas! (
Observação de Marietinha: uma delas se chamava Duquita
Pobel). Fui muitas vezes visitá-las com a vovó. Para mim eram velhíssimas. Hoje,
pensando, não deviam ser tanto assim, agora que eu me vejo como um broto aos 69 anos!
Faziam uns biscoitos, umas bolachas, uns bolinhos, uns docinhos que eu devia ter
aprendido a fazer para os meus netos nunca se esquecerem de mim, como o Proust!
Voltando ao vovô Elias: Moraram em Faria Lemos, em Carangola
(
)
(onde ainda havia a casa deles e o
Homero
fotografou há não muitos anos atrás), e em outros lugares. Por que terminaram a vida
em (São José do) Calçado (
),
no Espírito Santo? Sangue de aventuras. A história é meio trágica. O vovô
possuía uma bela fazenda em Santa Rita do Passa Quatro, talvez uma das cidades que
fica na estrada de rodagem entre Belo Horizonte e Vitória. A casa era das clássicas
da época. Mourões de madeira de lei a sustentavam como hoje os pilotis de cimento
armado. O assoalho era bem a cima do chão para dar lugar embaixo para guardar os
"trens" da lavoura: enxadas, arreios, carros de boi, sacos, esse mundo de tralha
que quase não existe mais hoje. Subia-se a escada para chegar à varanda que na maior
parte das vezes levava à sala de visitas, à casa de moradia. Quartos, cozinha,
corredor, outra varanda nos fundos, na área de trabalho. Era uma boa e grande casa.
O jardim embelezava a frente, cheio de belas flores. Rosa drusque e príncipe negro
estavam presentes, também miosótis , malva, e cravos. Quantas vezes, reformando o
jardim no fim do verão em Resplendor, a vovó se referia à beleza das flores naquele
jardim. Claro que havia outras, muitas, mas essas eram as suas preferidas. E na
janela, nos quartos e na varanda, vasos de flor-de-cera e malva, infalivelmente.
Na varanda da cozinha o ferro-de-brasa esquentando ou esfriando...
Para educar as crianças o vovô Elias levou para lá uma preceptora francesa.
Vovó
Teófila se casou muito cedo,
pelos 13 anos, para cuidar dos dois sobrinhos que haviam ficado órfãos. Eles eram
o tio Elias filho e o tio Olegário. Conheci a ambos quando bem pequena.
Sábio o vovô, em procurar uma pessoa capaz para educar aquele monte de criança!
A vovó Teófila não era mais de 20 anos mais velha que a vovó Celina! Ainda bem que
tinham muitos escravos, gente boa, que gostava muito da família, tanto que não
partiram depois da Libertação.
"Taí" o desastre. Mais uma tempestade daquelas, uma tromba d'água que levou
tudo que estava no porão. Animais de sela, de carro, os aparelhamentos de montaria,
de tropa, de carro de boi, a colheita guardada, ferramentas, pouca coisa recuperada.
Ainda o chiqueiro e o galinheiro, o pomar, as plantações perenes, tudo levado pela
água. Desastre completo. O que aconteceu aos escravos, onde moravam, nunca eu
havia pensado no assunto antes. Mineiro guarda dinheiro embaixo do travesseiro.
Ajuntados os cacos, vendido o que sobrou, com toda a família (imagine quanta gente:
família de sangue), lá foi o vovô, com os ex-escravos, a cavar morro, barranco, ilha,
costa capixaba a fora atrás dos riquíssimos tesouros... da lenda. Enquanto isso,
o tesouro cresceu em casa mesmo. Os filhos se tornaram adultos, tiveram os seus
próprios filhos, tornaram-se independentes, profissionais, cuidaram de si mesmos
e dos pais.
Conheci em Calçado a casa que foi deles, levada pela Teófila, filha da Biluca.
Já sem os filhos, a transformaram em pensão e as salas da frente em escola.
Tia
Corina e tia
Jovita eram as professoras.
O vovô curtia uma erisipela que não sarava (ah! Benzetacil!). Foram dos primeiros
a se converterem ao Evangelho, logo depois do vovô Romão, marido da vovó Celina.
Nos anais de Calçado há referencias a eles. Tio
Cristiano e tio
Horácio
(
Observação da Mariettinha: Tio Cristiano, era muito bom tio, alegre, divertido,
nos levava doces e balas que deixava na mala e nós ficávamos rondando e jogando
indiretas e ele se divertindo, Dentista, casado com Dorcas e Tio Horácio, coletor
estadual, casado com Alzira Alt), irmãos da vovó, foram moços muito ativos
na cidade, liderando a construção do hospital onde há retratos deles. Devem ter
sido bons maridos porque suas viúvas sempre os recordavam com saudade. Ambas
chamavam-se Dorcas, eram bonitas, talentosas, crentes e viveram bastante.
Uma delas passou os 100 anos e a outra quase chegou lá.
A preceptora francesa devia ser uma pessoa competente. Vovó sabia falar
francês. Eu tive as provas escolares dela. Letra bonita, toda em francês. Linguagem,
aritmética e ciências. O papel já estava amarelado, e tinha fitinha azul unindo as
páginas de papel almaço. Também sabia crochetar, tricotar, costurar e bordar todos os
pontos, até aqueles clássicos que se usa em fardas de gala, com fio de ouro.Você
pode imaginar que aventura era mexer nas latas de linhas da vovó? Rolinhos de fio de
ouro para bordar, vidrinhos de miçangas, vidrilhos e lantejoulas, fitinhas, sutaches,
sinhaninhas, navetas, agulhas as mais diversas de bordar,costurar, de crochê -em
todos os números- de metal ou osso ou marfim,como eram também as navetas de fazer
filé e frivolité. Que mundo de sonhos e fantasias! E não era só a vovó que conhecia
aquelas ciências femininas. Tenho ainda toalhinhas de crochê e filé feitas por tia
Corina, já bem velhinha, lá pelos 80 anos, e sabiam cardar e fiar!
Qual o preparo dado aos meninos, não tenho idéia. De cultura, devia ser igual,
pelo menos, ao das meninas porque os tios Cristiano e Horácio eram pessoas de
cultura na cidade e o tio
Alfredo,
que andou por Vitória lá pelos anos 30 e 40, terá visto a Escola de Comércio Alfredo
Filgueiras. Sobre ela, há muita gente boa que conheceu bem a história e deverá
contá-la a nós.
Tia
Corina teve escola no norte do Paraná, em Rolândia
(
).
Pelo que me contaram lá,
os primeiros alunos eram filhos de imigrantes e ela os ensinava a falar português,
e aos pais também. Foram líderes da Igreja Presbiteriana naquela região. A casa que
conheci era bem antiga, muito interessante. Depois de uma serquinha clássica e um
portão, passava-se por um jardinzinho e chegava-se à varanda, não muito grande.
Entrava-se na sala de visitas e dela, na grande sala de jantar, de onde se entrava
nos quartos que a cercavam. O quarto da tia Corina era ao lado da sala, com janelas
para o jardim da frente. Mas o interessante era a cozinha! Bem grande. Espalhada.
Alem do tradicional fogão de lenha, mesas e cadeiras, armários, havia uma cisterna!
E o tronco de um enorme pinheiro, velhíssimo; pela grossura do tronco se via. Mais
adiante estavam os tanques de lavar roupas, varais. O fantástico era a maneira de
puxar água da cisterna! Nunca tinha visto igual: uma corrente de ferro, bem grossa,
em movimento continuo, puxava a água clarinha lá do fundo e a levava até a caixa que
pousava no alto do telhado! Naquela terra fria, com tanto nevoeiro pela manhã,
geadas, vento frio, nada mais prático que aquela imensa "cozinha" que era o centro
de trabalho, não sendo necessário sair de casa para os cuidados corriqueiros do
dia-a-dia. Imenso o meu deslumbramento por aquele amor à natureza. Uma casa de
moradia em volta de um pinheiro original, preservado da mata milenar! Há alguma
coisa mais civilizada neste mundo?
Conheci a Geralda, enteada da tia; e os homens - infelizmente não me lembro dos
nomes deles. E a neta de uma das ex-escravas que era a filha da tia Corina (?).
Como era querida! Um amor de pessoa! E a tia Azenath e a tia Dinorah, como também
o meu pai, assim a consideravam: a prima! mas o nome? Quem sabe alguém se lembra.
Ela trabalhava na escola pública, encarregada da merenda. Cozinhava maravilhosamente,
lembrando a tia Nastácia dos livros do Monteiro Lobato. E tinha a mesma aparência
dos desenhos dos livros das edições antigas, bem feitos. Todos eram ativos na
igreja que era razoavelmente perto, dispensando muitas vezes a ida de charrete.
Mesmo tia Corina, já bem idosa, gostava de ir caminhando. Se houvessem crianças,
não a dispensariam, tenho certeza. Tão difícil carregar menino dormindo depois do
culto! Considero um grande privilégio ter ido à casa deles, mesmo por tão pouco
tempo. Quanta coisa eu saberia para contar a vocês.
Dos outros tios sei menos ainda. Já me referi às duas Dorcas (Observação da
Mariettinha: Dorcas e Alzira e moravam em Castelo, ES). Uma bem mais velha
que a outra, Moravam em Alegre, Guaçui, Castelo, Celina, era essa a região. Gostaria
de poder transpor para aqui o que tenho delas nos meus olhos: a simpatia, a
simplicidade cheia de beleza e amor, o porte, a cor dos cabelos, a sinceridade na fé,
na amizade, tanta coisa que consistiu em vidas preciosas.
Vovó Celina teve um namorado quando mocinha. Falava no moço: "Guardo um leque,
presente dele há tantos anos!". Mas não se casaram. O felizardo foi o vovô
Romão
Batista de Moraes. Contava que iam a bailes, muitos. Divertiam-se verificando os
sapatos das pessoas. Até aquela época todos os sapatos eram tipo mocassim, sem muita
diferença entre pé-direito e pé-esquerdo. Agora vinham talhados, bem definidos,
mas as pessoas não sabiam calça-los e trocavam os pés. Imagine o rapaz vir "fazer
sala", todo "frajola", de pé trocado!... Ou a garota de vestido de seda fina,
cheia da babados e rendas, anáguas engomadas, salto alto de pé errado!! Era o
melhor da festa aos olhos delas. Como eu gostaria de relembrar as histórias das
festas durante a visita do Imperador e família a São João del Rei e outras
cidades por lá! São apenas sombra na minha memória.
Em São José do Calçado a venda do vovô Romão ficava na esquina da praça
com a rua que sobe como continuação da estrada de Bom Jesus de Itabapuana, onde
passava a estrada de ferro. Vendia de tudo, desde sal grosso a luvas de pelica
francesas, de móveis austríacos e fazendas inglesas e francesas a arreios,um bem
abastecido shopping center de hoje. Conheci o local, levada pela Teófila, que se
lembrava de toda a história. A casa onde a vovó morou não existia mais, só o
terreno vazio, em 1981. Mas a casa da Teófila ainda era mobiliada com os móveis
comprados do vovô. Muito bem cuidados sempre, dava gosto ver. Esses móveis
austríacos eram semelhantes a algumas peças que chegaram à nossa casa em Resplendor,
camas, espelhos, guarda-roupas e cadeira-de-balanço, sofá e poltronas de palhinha,
que abandonamos em Resplendor e não conseguimos mais recuperá-los... Como o vovô
Romão fazia parte do grupo que construiu o hospital da cidade, lá está o retrato
dele, do médico amigo, e de um dos irmãos da vovó.
Vovó
Aninha, mãe do vovô Romão, tinha muitas imagens. Ao se converter,
quebrou-as e jogou os cacos no córrego que passa no fundo da casa. Algum tempo
depois, foi encontrada lá no fundo do riacho, uma estátua que se tornou a santa
padroeira da cidade. Aprendi que pode ser uma delas que não tinha sido bem
esmigalhada. O ver. Mário Neves escreveu algumas coisas sobre cada um da família
no livro do cinquentenário da igreja em Calçado.
Foi muito difícil para vovó criar os quatro filhinhos sem o vovô. A família
cuidou bem deles, dando muito carinho, amor. Papai (
Synval Filgueiras de Moraes),
o mais velho, estudou com o Reverendo Omegna em Friburgo, morando na casa deles.
Conheci a Dona Lili Omegna e as filhas, a Eunice e a Silvia, que se lembravam muito
do meu pai e me deram também muito amor. Como o Ateneu do Reverendo Omegna deixou
de existir, papai foi estudar em Lavras, no Instituto Gammon. Lá se preparou para
o seminário, indo para Campinas. Terminando o curso em 1929, o Presbitério o
mandou para Resplendor onde passou o ano de treinamento antes de ser ordenado
pastor. Já ordenado e pastoreando as igrejas Presbiterianas desde o vale do Rio
Doce até o mar, no Espírito Santo, casou-se em 1930, levando a mamãe para Resplendor,
Minas Gerais, onde nascemos e moramos até 1953. Como ambos deixaram memórias, é mais
fácil copiá-las.
Vovó Celina e as crianças, tio Ismar, tia Dinorah e tia Azenah, continuaram
morando em Calçado até que o tio Alfredo os levou para Vitória. Vovó teria uma
pensão na escadaria da Avenida Capixaba, perto do colégio, e "os meninos" estudariam.
Quando os quatro filhos eram pequenos, houve um surto de meningite em Calçado e
algumas crianças ficaram com sequelas. O Luciano da Biluca, a Diosmenia sobrinha
do vovô, e o tio Ismar, foram prejudicados para sempre.
O tio
Ismar carregou a vida
toda um barulho no ouvido que o enlouquecia. Conseguiu fazer o curso de comércio mas
nunca trabalhar continuamente em um mesmo emprego. Durante toda a minha vida vi o
sofrimento de todos pela incapacidade dele. Já maduro, entrando na velhice, a
medicina bem mais desenvolvida, descobriu-se que uma pequena operação recuperaria a
audição e não teria mais as crises difíceis. Mas ele fugiu de Belo Horizonte.
Tinha sido operado, doando um pedaço de osso para fazer enxerto na coluna do papai.
Não se dispos a se submeter a outra, apesar de ser para o próprio bem.
Tia
Dinorah
foi uma lutadora. Em Calçado trabalhou em uma farmácia, de algum
parente, e gostava de química. Era elegante e jogava tênis muito bem. Em Vitória
casou-se com um belo jovem loiro, de olhos azuis, que trabalhava no cais. Era o tio
Antônio Peyneau, francesinho simpático e querido. Para ajudar, ela costurava e dava
aulas de corte e costura, durante muitos anos. Sempre trabalhou muito na Igreja,
tocando armônio, dando aulas na Escola Dominical, liderando o Sociedade Auxiliadora
Feminina da igreja.
Tia
Azenath foi a caçula.
Estudou na Escola Normal do Estado, sempre com boas notas. Logo depois de formada,
casou-se com Jader Gomes Coelho, pastor Presbiteriano. Foi verdadeira auxiliadora do
tio Jader. Como a mamãe, mais da metade do ministério dele foi feito por ela. Como
trabalhava e com que sabedoria! Sempre teve uma escola na igreja. Fiz o quarto ano
primário com ela na escola da Igreja de Vitória. O que ensinou, não esqueci. O
grande trabalho deles foi em Cachoeiro de Itapemirim, onde criaram o Ateneu
Cachoeirense, uma escola que formou muita gente boa e ainda está lá, orientando e
formando bons brasileiros. Cursou Pedagogia no Colégio Cristo Rei em Cachoeiro de
Itapemirim, tornando-se grande amiga das freiras.